Há 12 anos a desenhar a estratégia da Atlantic Parts, José Alves Pires fala sobre a influência do passado nos projetos atuais e futuros da empresa.
ENTREVISTA PAULO HOMEM E NÁDIA CONCEIÇÃO FOTOS MICAELA NETO
José Alves Pires, Diretor-geral da Atlantic Parts desde 2006, faz uma retrospetiva dos momentos mais marcantes da história da empresa e fala sobre a estratégia ibérica, iniciada através da criação da Rec Atlantic Parts, e da aposta na rede de oficinas e marca de peças RecOficial.
Qual o primeiro pensamento que lhe ocorre quando pensa que a Atlantic Parts está a comemorar 20 anos de atividade?
É importante quem cria a empresa, mas também é importante quem a permite crescer. E é assim que avalio estes 20 anos. Correu bem, mas podia ter corrido melhor. E acho que, enaltecendo a capacidade das pessoas se terem reunido para criar a empresa, o que foi importante do ponto de vista cooperativo, teria sido também importante continuar com esta dinâmica. A Atlantic Parts continua a ser de um grupo de sócios, que devem ser os primeiros a ajudar a empresa a crescer e a lutar por ela.
Quais os principais momentos que marcaram a Atlantic Parts nestes 20 anos?
Desde que estou na empresa, foi, em primeiro lugar, a alteração dos estatutos, que estavam feitos de uma forma que limitava a capacidade de desenvolvimento da empresa. Eram muito fechados e dependentes dos sócios, o que dava pouca mobilidade. O mercado estava a crescer e havia necessidade de alterar esta estratégia. E por isso foram alterados e foi feito um aumento de capital. Para além disso, faltava muito produto, e era preciso complementar algumas marcas. Trouxemos novos produtos e criámos incentivos, até que, em 2006, tentei fazer uma parceria com um grupo espanhol, porque achava que a estratégia de desenvolvimento do setor passava por uma parceria ibérica. Mas não se proporcionou, e mais tarde criou-se a Rec Atlantic Parts, com a Recauto, o que marcou o crescimento das vendas, porque começámos a ter vendedores e produtos que não tínhamos até aí. Conseguimos ter condições melhores, o que seria impossível enquanto AP.
A Atlantic Parts foi o primeiro grupo de distribuição português. Estava um pouco à frente do seu tempo quando surgiu…
Sim, é de enaltecer o facto de se terem juntado vários sócios para criar uma empresa com um objetivo comum. Se esse espírito tivesse continuado, penso que neste momento a AP seria uma empresa com uma dimensão diferente e com muito poder em termos de vendas e capacidade de negociação.
A Atlantic Parts ainda é uma cooperativa?
O objetivo da Atlantic Parts foi comprar em grupo, juntar pequenos para criar volume e poder, e daí falarmos em cooperativa. Mas é uma S.A., apesar de ainda hoje se caracterizar como cooperativa. Estávamos fechados a um conceito de vender a associados, mas a dinâmica do mercado obrigou a que tivéssemos de alargar a nossa base de distribuição e vendas a outros clientes. Atualmente temos cerca de 140 pontos de venda de retalhistas, não vendemos a oficinas.
Quantos sócios se mantém do projeto inicial?
O projeto foi iniciado com 15 sócios e depois houve uma agregação até aos 23 e, alguns anos depois, até aos 30. Entretanto foram saindo alguns e neste momento são 26 sócios ativos.
Como nasceu o projeto Rec Atlantic Parts?
O Grupo Recalvi faturou, em 2017, 93 milhões de euros, e a Atlantic Parts faturou oito milhões. A ideia foi criar um grupo ibérico e com base nisso criámos a Rec Atlantic Parts, e começámos a negociar as condições para os dois países. E isso permitiu-nos ir buscar condições que nem o Grupo Recalvi nem nós tínhamos. Assim, temos distribuição ibérica e negociamos ao nível de um grupo internacional, o que trouxe novas marcas, novas oportunidades e melhores condições, porque conseguimos discutir novos escalões.
Esse passo foi importante para a continuidade da Atlantic Parts?
Sim, penso que a Rec Atlantic Parts foi o passo mais importante para a continuidade da AP. Se não tivéssemos a parceria com a Recalvi não tínhamos determinadas marcas, e teríamos alguns problemas de competitividade e complementaridade. Esta decisão foi fundamental em termos estratégicos.
Com esse projeto vieram também as peças RecOficial…
As peças trouxeram a possibilidade de podermos ter uma rede de oficinas com produtos que são considerados oficiais. Cerca de 70% dos produtos são produzidos em fábricas de produto original. Mas precisávamos de uma pessoa dedicada apenas ao projeto RecOficial. Neste momento já temos uma pessoa para liderar o projeto, o que nos vai permitir criar uma rede e fidelizar os nossos clientes, e já podemos vender peças. Já existem 68 oficinas em Espanha e já existe o site RecOficial Service. As oficinas que pertencem à rede vão ser abastecidas com produtos RecOficial e outros, pelos nossos clientes ou sócios.
O projeto da rede oficinal chega a Portugal numa altura em que as redes ainda estão em crescimento, mas em que as melhores oficinas já estão integradas em redes…
Sim. Debatemos este assunto durante bastante tempo, mas temos condições e fees competitivos, para a qualidade de serviço que podemos prestar. Temos uma mais-valia em relação às redes que existem.
Como analisa o facto de alguns dos associados da Atlantic Parts terem começado a trabalhar com alguns grupos de distribuição?
Não entendo como é que um sócio incentiva o crescimento de outras empresas que estão no mesmo setor e que são concorrentes daquela onde é sócio. Temos condições e temos produto. Entendo que a concorrência seja nosso fornecedor residual, mas não consigo entender que a AP seja o residual para os seus acionistas. Não há razões que façam da AP um fornecedor residual. Do ponto de vista racional e económico não faz sentido ter uma empresa e não a ajudar a crescer.
Em 2017 investiram no digital, com a nova webshop e o novo site. A estratégia digital vai continuar?
Queremos resolver a situação digital de uma forma avançada para o futuro: cada vez mais temos de ter a capacidade para ir a plataformas das origens. Temos de ter uma capacidade digital que se alargue a todos os componentes, a ter ligações, quer com a loja, quer da loja para a oficina. Pretendemos uma interligação completa e associar isto aos catálogos eletrónicos e de compras que estão associados à distribuição de peças originais. Precisamos que a oficina esteja ligada à nossa loja enquanto cliente e que nós estejamos ligados a eles enquanto fornecedor de material, e isto a nível ibérico. E que essa loja consiga vender as nossas peças e se for necessário a origem também consiga estar numa plataforma onde nós temos acordos e cobrimos estas duas fases, o aftermarket, que representa 70% do volume de faturação, e a origem, com 30%. O próximo semestre será importante nesse aspeto.
O investimento na parte digital é fundamental para a relação que se quer estabelecer com as oficinas?
Sim, para termos uma plataforma que integre a informação que tem a oficina com a loja e por sua vez integre na minha enquanto fornecedor e que, para além disso, ainda haja a possibilidade de ter peças de origem. Estamos a estudar uma forma de integrar isto, com os requisitos necessários a nível internacional, para se chegar a uma plataforma homogénea nas referências, que é algo que não temos em Portugal. O objetivo é termos um integrador de todas estas plataformas, para realizar serviço e termos a capacidade de crescer. Esse é o objetivo para o segundo semestre deste ano.
Este ano têm feito investimentos na logística, com a descentralização dos armazéns. Vão investir também no call center, na distribuição, no alargamento da rede comercial…
Temos agora um armazém com 1600 m2 com a possibilidade de duplicar a área. O armazém anterior tinha 200m2 e, logo aí, a dinâmica é completamente diferente. Atualmente temos uma capacidade total de armazenamento de quase 9000 m2. E temos uma logística que permite chegar ao cliente duas vezes por dia. Cada vez mais precisamos de ter cobertura nacional e logística, e por isso é importante o armazém do Porto. Formámos também uma equipa de comerciais, para estarmos mais perto do cliente. O Porto está mais perto da Recalvi e, por isso, qualquer produto que não tenhamos, facilmente temos na Recalvi. No caso do serviço ao cliente, falta-nos a formação. Queremos ter boas condições para que o produto chegue aos vários locais e queremos chegar também com formação. Isto vai-se modificar com a entrada da RecOficial, que pressupõe formação a todas as oficinas. Queremos aproveitar essa formação para os nossos clientes e para as oficinas.
Ainda têm a marca própria, a Comet?
Sou apologista que, no mercado português, temos de nos especializar numa marca. Mas, além da RecOficial, ainda temos a marca Comet. Existe mercado para as duas e neste momento convivem pacificamente. Mas diria que, no futuro, a decisão será a de acabar com uma delas e levar o consumidor à conclusão de que ganha mais em concentrar tudo numa determinada marca. Nesta fase estamos na dispersão da especialização, de definir para onde vamos, e daqui a algum tempo provavelmente vamos especializar-nos apenas em uma. Temos de nos especializar cada vez mais, é importante agarrar volume para ter boas condições.
Que análise faz do mercado oficinal em Portugal?
Atualmente, há oficinas que investem em formação e equipamentos e há quem não faça nada disso e continue a vender. E isto é desonesto no ponto de vista da concorrência. As discrepâncias são enormes. É necessário inspecionar, legislar e dar formação. E, enquanto vendedores de peças, precisamos de ter maior influência no consumidor final. Temos de conseguir que a loja esteja em cumplicidade connosco, para influenciar as oficinas. Houve uma polémica sobre a informação que as marcas não queriam disponibilizar ao aftermarket, e chegou-se à conclusão que tinha de ser dada, porque os preços ao consumidor iriam diminuir. Mas os preços não diminuíram no que diz respeito ao aftermarket e à manutenção dos veículos. Isto só se vai resolver quando conseguirmos ser cúmplices da oficina e mostrar que ganham mais se diminuírem as suas margens. Porque vai haver mais gente a ir à oficina. Precisamos de chegar rapidamente à oficina, daí a fidelização que pretendemos, através da rede oficinal. Conseguimos resolver a questão da transmissão de dados do veículo para o concessionário, se tivermos qualidade e preços atrativos na oficina. É aí que temos de chegar. Mas enquanto distribuidores estamos muito longe, porque não chegamos às oficinas. Por isso tem de haver maior cumplicidade com a loja e com a oficina.
Ainda há poucos distribuidores que o fazem como política de apoio às oficinas…
A questão é que temos marcas que têm muita informação sobre as oficinas, mas depois é preciso alguém ir às oficinas para os ajudar a gerir. A rede RecOficial tem como objetivo também essa ajuda em termos de gestão, por forma a conseguirmos ter um maior consumo, o que traz benefícios para todos.
Em 2007, referiu que o desconto estava instalado no mercado, e que era um apologista do preço líquido. Ainda é assim?
Hoje em dia é lamentável que existam operadores com duas tabelas, dois descontos, mas no final do dia o preço líquido é o mesmo. Isto cria problemas a todos os que estão neste mercado. Porque o cliente aproveita estas situações e isto significa que, para acompanhar isso, teremos de fazer um desconto maior. E isto só irá mudar quando percebermos que só temos a ganhar com os preços líquidos. Há duas coisas que têm de ser modificadas: esta “guerra” de descontos, e o facto de o cliente deixar dívidas em vários operadores.
Que outros problemas existem neste setor?
As garantias e devoluções começaram a ser um problema quando esta atividade deixou de ter as margens que tinha e o preço médio das grandes devoluções começou a ser muito alto. Este é um problema difícil de resolver, porque o cliente reclama à loja e a loja reclama a nós. Mas nós não produzimos a peça e temos de reclamar a quem produz. E gera-se uma cadeia de encostar a culpa a outro. É abismal o valor que as empresas têm de reclamações ou devoluções para garantia. E é um problema que tem tendência a crescer, cada vez mais, com o aumento da tecnologia.
Que análise faz da concorrência, nomeadamente a entrada de marcas como a Distrigo, a Motrio, e de redes como a RedeInnov, etc.?
Relativamente às peças que vêm da origem, estamos cá para aproveitá-las. Quanto aos novos grupos, acho que haverá dificuldade. O mercado não cresceu, por isso, penso que ir buscar marcas que já estão distribuídas, para novos grupos, me parece muito difícil.
Mas é uma área onde se tem investido muito…
Sim. Todos os grandes operadores ampliaram os armazéns. Mas não vejo o mercado a crescer para suportar estes investimentos. Se há novos armazéns sem novo mercado, terão de absorver mercado uns aos outros. Existe a possibilidade de aproveitarmos as redes para colocar novos produtos, mas crescimento de mercado não existe. E tenho dificuldade em perceber porque é que, enquanto concorrentes, não fazemos acordos. Não o conseguimos fazer em Portugal e fomos fazê-lo a Espanha.
Perguntas rápidas
Qual foi o seu primeiro carro?
Foi um Renault 5.
Quantos quilómetros faz por ano?
Faço cerca de 60 mil quilómetros.
O que mais gosta neste setor?
Gosto de gerir pessoas.
E o que menos gosta?
A falta de lealdade.
O que faz nos tempos livres?
Sou cozinheiro.
Perfil
José Alves Pires é licenciado em economia e fez várias especializações. Quando terminou o curso esteve no Ministério das Finanças em Cabo Verde e passou depois pela Arthur Andersen, pela Europcar, Fiat, Sociedade Comercial Guérin, Guérin Rent-a-car, grupo Lusomundo, grupo Espírito Santo e Sonangol, e, em 2006, integrou a Atlantic Parts como Diretor-geral.