Entusiasta das questões ligadas ao ambiente, Francisco Ferreira, Presidente da ZERO, ambiciona um futuro com zero emissões e zero desperdício no setor automóvel.
ENTREVISTA NÁDIA CONCEIÇÃO FOTOS MICAELA NETO
A ZERO – Associação Sistema Terrestre Sustentável, fundada em 2015, assume o compromisso de defender e intervir nas questões ambientais em Portugal e o setor automóvel é uma das áreas onde mais atua. Em entrevista à Pós-Venda, Francisco Ferreira, Presidente da associação para o triénio 2019-2021, revela o que tem sido feito no setor automóvel e quais as principais preocupações da ZERO para o futuro.
Em primeiro lugar, faça-nos um enquadramento do que é a Associação ZERO?
A ZERO surge no final de 2015, e é uma organização não-governamental, onde o grande objetivo é o foco nos aspetos do desenvolvimento sustentável em todas as suas vertentes, e não apenas no ambiente, ou seja, é garantir que a nossa análise dos problemas e aquilo que reivindicamos se enquadre na defesa dos princípios da melhoria da qualidade de vida em termos de ambiente, mas integrando também questões sociais e económicas, bem como a boa governança. E, portanto, procuramos ter uma visão equilibrada e de futuro em relação a todos os problemas. A nossa preocupação é garantir que a qualidade de vida melhore, sem prejuízo para o ambiente, e que garantimos às próximas gerações um futuro melhor do que aquele que temos agora.
Quais são os temas, dentro do setor automóvel, que a ZERO mais tem defendido do ponto de vista ambiental?
Para nós o setor automóvel é uma área em que temos um enfoque muito grande. Quer do ponto de vista dos problemas, quer das soluções. A ZERO é membro da Federação Europeia dos Transportes e Ambiente, com a qual coordenamos muitas ações, focando-nos em várias vertentes do automóvel. A primeira tem que ver com o facto de os transportes, em Portugal e como um todo, pesarem cerca de ¼ do total das emissões de gases com efeito de estufa, que causam as alterações climáticas. E o transporte rodoviário representa a maior percentagem. A segunda tem que ver com o querermos assegurar a mobilidade de todos os cidadãos, o que passa por olhar numa lógica de mobilidade sustentável para o transporte coletivo, individual, para os veículos partilhados, para os modos suaves – as bicicletas, trotinetes, etc. Procuramos ter uma visão integrada daquilo que cada vez mais se fala: a mobilidade como um serviço. E esse serviço deve ser providenciado tendo em conta as implicações ambientais que temos, ao utilizar determinados tipos de mobilidade, e aqui, o automóvel é uma peça importante. Para além das alterações climáticas, um veículo traduz-se num elevado consumo de recursos, onde é preciso garantir que, no final de vida, todos os materiais são bem encaminhados, por forma a minimizar os seus custos iniciais para o ambiente. Na operação, o automóvel é uma fonte de vários poluentes do ar, para além dos gases com efeito de estufa e, por isso, estamos muito atentos às necessidades de garantir que a qualidade do ar se mantém abaixo dos valores limite, que o ruído associado é minimizado, ou seja, que a proteção da saúde e do ambiente, que a construção e utilização do automóvel encaixe na nossa sociedade da forma mais sustentável possível. E estamos assim atentos a tudo o que é o ciclo de vida do automóvel, da produção, passando pelo uso, os combustíveis utilizados, os veículos elétricos, os serviços de mobilidade partilhada, etc. O automóvel acaba por ser um dos temas aos quais damos mais atenção na nossa atividade.
A ZERO disse, em 2016, que pretendia ver proibida a venda de veículos a gasolina e a diesel em 2030. Acha que é algo exequível?
Já vários países disseram que vão cumprir essa meta: a Dinamarca, a Suécia, a Irlanda, a Holanda. E a França e o Reino Unido estão a apontar para 2040. Penso que essa decisão vai ser inevitável. Vamos ter veículos elétricos, sejam a hidrogénio, ou a baterias, que vão ter um peso cada vez maior. Prevê-se que o custo desses veículos venha a ser igual aos dos veículos a combustão em 2022 ou 2023. E com autonomias bem superiores do que as que temos agora.
As infraestruturas não são um problema limitador?
Obviamente que temos de resolver o problema das infraestruturas, que começa a ser cada vez maior. Neste momento, uma empresa comprar um veículo elétrico é um bom negócio, com os incentivos que estão em vigor, é a melhor escolha ambiental e económica. Desde que tenham onde os carregar. Quem tem garagem, é simples, mas, para quem não tem, não é algo fácil, hoje em dia. Mas daqui a uns anos, o veículo elétrico vai ser de massas. Daqui a uns anos vai dominar as vendas. É uma tendência crescente e em Portugal não está a dar resposta. Porque é que o motor de combustão é problemático? Porque, mesmo que se substituam os combustíveis, mesmo que se tenham biocombustíveis ou combustíveis sintéticos, que se consegue gerar sem ser a partir do petróleo. Vou ter sempre emissões de óxidos de azoto, emissões de partículas. Podemos não ter emissões de dióxido de carbono, mas vamos ter sempre emissões de outros gases, mesmo num país que está a “explodir” em termos de eletricidade de fontes renováveis. Não tenho dúvidas que é inevitável esta transição para os veículos elétricos, por razões climáticas e por razões de qualidade do ar.
Diz-se que o veículo elétrico polui mais que um veículo a combustão, desde o início da produção até ao final do seu ciclo de vida. Qual a sua opinião?
A Federação Europeia dos Transportes e Ambiente, através de um estudo que foi adjudicado a uma equipa de investigação holandesa, mostra que não é assim. Tal, em alguns países, pode não ter um ganho tão grande, porque a produção de eletricidade ainda depende muito do carvão, e, por isso, não é relevante em termos de redução de co2. Mas a poluição que é feita, está a ser lançada longe da cidade, numa fábrica, e não na cidade, como é o caso de um veículo a combustão. A bateria do carro é a sua primeira vida, mas depois tem uma segunda, uma terceira, etc. E a quantidade de baterias que efetivamente existe em fim de vida é muito pouca. Os veículos elétricos perdem na construção, em relação a um veículo a combustão, mas durante a operação, a sua pegada é muito melhor do que a de um veículo a combustão, principalmente se tivermos eletricidade de fontes renováveis. E aí compensa, de longe, essa perda inicial. Mas é bom que se perceba que todas estas opções têm um custo ambiental e material. Procura-se a melhor solução, mas nenhuma representa uma solução ideal, sem pegada ambiental.
Qual a posição da ZERO face, por exemplo, a remoção dos filtros de partículas e catalisadores dos veículos a diesel?
Pedimos recentemente uma reunião ao Ministro das Infraestruturas e da Habitação e pretendemos uma conversa mais técnica com o IMT. Queremos envolver o Ministério e o IMT nesta discussão porque a questão dos filtros de partículas é absolutamente crucial. Estarmos a classificar zonas de emissão reduzida em que só se quer que lá passem veículos mais recentes, como acontece em Lisboa, mas depois, se alguns desses mais recentes não tiverem filtro de partículas, todo o esforço que se faz é em vão.
Isso irá fazer-se através de melhorias nas Inspeções Automóvel?
É absolutamente vital que exista nova legislação nos centros de inspeção, assim como instrumentação que permita avaliar se existe ou não filtro de partículas no veículo. Pode recorrer-se àquilo que já é utilizado, o opacímetro, e, portanto, ter um nível de exigência muito baixo, ou então utilizar outros equipamentos que permitem aferir ainda com maior rigor, se o veículo tem ou não instalado o filtro de partículas. Para a ZERO, esta é uma luta fundamental para atingirmos os objetivos europeus de redução de emissões.
O que pensa a ZERO da venda indiscriminada de lubrificantes auto nos hipermercados, não se sabendo depois o destino final do lubrificante usado que saiu do automóvel?
Esse é um grande problema. Temos um trabalho já de há alguns anos, uma das áreas que seguimos é a área dos resíduos urbanos e especiais. E, na parte dos resíduos especiais, temos um protocolo com a ECOLUB, a entidade responsável pela recolha e tratamento dos óleos lubrificantes usados em Portugal, para acompanharmos esses problemas, denúncias, situações como, por exemplo, a dos veículos em fim de vida, que deveriam ser desmantelados apropriadamente, e isto é algo bastante dramático em Portugal. O veículo tem o óleo do motor, tem gases fluorados que estão no sistema de ar condicionado, tem resíduos perigosos associados às pastilhas de travão, etc. Portanto, é uma quantidade de resíduos ainda muito expressiva, para os quais existe tratamento adequado. É preciso garantir que esse tratamento é feito.
As oficinas geram grandes quantidades destes resíduos, mas nem sempre são bem encaminhados…
A Inspeção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território tem feito um bom trabalho a esse nível. Numa oficina, se tudo funcionar da forma como deveria, todos os aspetos do tratamento dos resíduos estão devidamente acautelados. Ou seja, nas oficinas, de marca e independentes, os resíduos estão identificados. Mas há, realmente, muitas oficinas em que não existe essa estrutura, que tem custos, mas que é fundamental garantir. Há responsabilidade, por parte de quem coloca um veículo no mercado, de recolher depois os seus diferentes componentes. Nos pneus, temos a Valorpneu, nas baterias temos também recolhas que são feitas, nos gases fluorados também, etc. Se o sistema funcionasse bem, era garantido que o impacto ambiental seria muito menor. E, em muitos casos, há materiais que se podem aproveitar.
Como analisa a ZERO o trabalho desenvolvido por essas entidades gestoras de resíduos?
Temos vindo a acompanhar o trabalho destas entidades, como o da Valorpneu. Em muitos casos, sentimos que há soluções que gostaríamos que fossem melhor implementadas. Por exemplo, o encaminhamento de pneus para incineração: queremos garantir que só vão para incineração os pneus que realmente não têm a possibilidade de ser extraída a borracha para ser depois transformada em piso, ou para outros aproveitamentos. Por vezes, não há a noção da quantidade de materiais diferentes que um automóvel tem, desde têxteis a componentes de carbono, são materiais que depois se tornam resíduos perigosos.
Não existe essa noção por parte das oficinas?
Falta ainda alguma sensibilização e envolvimento pela positiva nas oficinas. Se houver perfeita noção do impacto que determinadas negligências acabam por ter, se calhar as oficinas não se importariam de suportar mais alguns custos para lidar com as questões ambientais. A penalização existe, as inspeções devem ser feitas, mas, acima de tudo, tem de haver uma dupla ação. Por um lado, o envolvimento, e, por outro, a fiscalização.
Cada vez mais se fala no fim do diesel, e a ZERO defende a penalização dos veículos a combustão. Considera que serão estas as tendências a curto prazo?
Um carro a gasóleo emite, regra geral, o dobro de óxidos de azoto de um carro a gasolina, num veículo equivalente. E, por exemplo, no caso de Lisboa, o problema é que, em algumas zonas da cidade se ultrapassam os valores limite de óxidos de azoto. O protocolo anterior para avaliar as emissões, nomeadamente de CO2, o NEDC, foi substituído pelo WLTP, que está mais próximo da realidade, mas a ideia é que se utilizem as real-time emissions, ou seja, não em banco de ensaio, mas em condução real. Há várias vertentes: uma é as cidades conseguirem garantir os valores limite. O diesel, mesmo com as novas tecnologias, consegue reduzir as emissões, mas não o suficiente. Depois existe o problema das partículas, que estaria resolvido se todos cumprissem com a utilização do filtro de partículas. E o problema do ruído também é algo que se coloca, porque os veículos a diesel são mais barulhentos. E, por isso, a tendência é começarmos a falar de áreas urbanas sem emissões, não apenas zonas de emissões reduzidas, mas zonas de zero emissões, onde só existem elétricos. Os veículos mais importantes para serem elétricos são os transportes públicos, todos os que circulam muito. E essa deverá ser a prioridade. Estamos convencidos que os objetivos da União Europeia, que impõem um limite de emissão média por marca automóvel de 95 gramas de CO2 para 2021 aplicando depois uma meta de redução entre 2020 e 2025 para mais tarde tornar o continente europeu neutro em carbono em 2050 vai tornar a vida para os veículos a combustão cada vez mais complicada.
Tem a ZERO algumas propostas para este setor, do ponto de vista ambiental?
Uma das coisas que para nós é fundamental é o Estado continuar, pelo menos durante mais um ou dois anos, com os incentivos aos veículos elétricos. Há uma fase em que se deve criar economias de escala e dar seguimento à solução, mas depois não se pode continuar a financiar. Achamos que, neste momento, não devem existir quotas. O Estado deve fazer um esforço para garantir que todas as compras de veículos elétricos têm esses incentivos. Depois, há a diferença entre empresas e particulares, e essa diferença faz sentido, porque as empresas têm hipótese de beneficiar mais com estas aquisições. Em relação aos biocombustíveis, achamos que sempre foram muito complicados: por exemplo, para nós é fundamental que não tenham óleo de palma. É uma campanha à escala mundial, porque o óleo de palma sustentável deve, no máximo, ir para alimentação. E o que acontece na Europa é que o óleo de palma é mais utilizado no biocombustível do que na alimentação. Em alguns biocombustíveis, feitas as contas, não se beneficia assim tanto. E, portanto, o nosso objetivo é tentar apostar numa mobilidade elétrica.
O que mudaria a ZERO em relação às oficinas?
Na ZERO, defendemos que é muito importante existir um trabalho das associações ligadas às oficinas e ao setor automóvel, no sentido de garantir, até por questões de mercado, que todos cumprem as mesmas obrigações. Porque, como é evidente, se temos duas oficinas concorrentes, e uma cumpre e outra não, uma terá custos que a outra não terá. Há que fazer esse esforço. A Inspeção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território deveria também atuar mais nesta área, mas os meios são limitados e há cada vez mais oficinas. E as oficinas têm de começar também a adaptar-se à mobilidade elétrica. O que notamos, em alguns casos, mesmo nas próprias marcas, é que, como ainda não têm economia de escala, por vezes o veículo tem de ir realizar a reparação ou manutenção noutro país. Ou seja, mesmo para além dos outros problemas, nesta parte da mobilidade elétrica, ainda não se está a dar a resposta que se deveria. E é algo que também é preciso corrigir.
Perfil
Licenciado em Engenharia do Ambiente pela FCT-NOVA, Mestre pela Virginia Tech, nos EUA, Doutorado pela Universidade Nova de Lisboa e desde sempre um entusiasta das questões ligadas ao ambiente e à sustentabilidade, Francisco Ferreira é professor no Departamento de Ciências e Engenharia do Ambiente da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa (FCT-NOVA) e a sua área de investigação é a qualidade do ar. Paralelamente, foi Presidente da Quercus, de 1996 a 2001, e Vice-Presidente, entre 2007 e 2011. Foi membro do Conselho Nacional da Água e do Conselho Nacional de Ambiente e Desenvolvimento Sustentável. É, atualmente, Presidente da ZERO.
Perguntas rápidas
Qual foi o seu primeiro carro?
Foi um Peugeot 403, de 1954, que era do meu avô.
Quantos quilómetros faz por ano?
Cerca de 20 000 km por ano.
O que mais gosta no setor do ambiente?
O desafio. É termos muita coisa para resolver e ter de encontrar soluções. E isso obriga-nos a discutir, a aprender.
E o que menos gosta?
É que, em 10 ideias que colocamos e justificamos, com sorte, uma é posta em prática.
É importante ir ao terreno ver eventos, conferências, etc.?
Sim. Tenho a vantagem de ter uma profissão ligada ao ambiente, o que me faz beneficiar muito. É um benefício como docente o trabalho na ZERO e vice-versa.
O que gosta de fazer nos tempos livres?
Gosto muito de caminhar e de estar com a família.
Artigo publicado na Revista Pós-Venda n.º 49 de outubro de 2019. Consulte aqui a edição.